“Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo – para criar um mundo nas sombras dos significados”
Susan Sontag, Contra a Interpretação
No presente ano de 2023 um debate tem sido enfrentado no Brasil entre representantes do governo federal, liderados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e os técnicos do Banco Central do Brasil, liderados pelo presidente da instituição Roberto Campos Neto. O objeto de tal debate é, como se é de esperar, os rumos da política monetária no Brasil. O lado do governo federal defende que a política monetária está estrangulando a demanda agregada da economia nacional e que o patamar da taxa SELIC nominal está mais elevada do que deveria. Já os técnicos do Banco Central defendem que a economia brasileira ainda apresenta pressões inflacionárias e que uma mudança no patamar de juros poderia afetar negativamente expectativas e criar um novo quadro inflacionário.
No meio desse conflito várias partes da sociedade civil tomaram seus lados. Defesas de ambos os lados podem ser encontradas em textões do Facebook, em fios do Twitter e em correntes do Whatsapp. Até mesmo em espaços suspostamente acéfalos como o TikTok e o Instagram é possível encontrar polemistas públicos defendendo seu lado favorito.
Sendo bastante sincero com você, leitor, este que vos fala está mais alinhado com o lado do Banco Central. Em meu julgamento, com base nas evidências que observo, a narrativa de pressões inflacionárias e riscos de choque de expectativas é correta; sobretudo por causa de incertezas no campo fiscal e de mudanças na conjuntura macroeconômica americana. Todavia, a razão pela qual escrevo o presente artigo é para esmiuçar criticamente um ponto retórico que observo na defesa das políticas de Campos Neto por parte de alguns intelectuais públicos.
Esse ponto retórico em questão é a comparação feita entre a postura negacionista do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro com relação aos riscos da Covid-19 e a postura negacionista do presidente Lula da Silva com relação ao risco macroeconômico. Muitos tem comparado os desafios do atual governo federal contra o Banco Central como uma forma de negacionismo dos supostos “fatos” da conjuntura macroeconômica nacional. Um exemplo de uso dessa retórica comparativa é um artigo do senhor Gustavo H.B. Franco no Estadão usando explicitamente essa comparação. Apesar de não concordar com a posição do governo com relação aos rumos da política monetária, não julgo que essa comparação seja adequada. A razão para minha discordância se deve ao fato de que a política monetária ter uma natureza científica diferente de uma política de saúde pública.
Um fato assustador para muitos economistas é o de que nossa ciência não é uma área de saber com exatidões igualáveis a uma ciência natural como a medicina. Existem certos paralelos que podem ser traçados entre as chamadas “ciências da vida” (medicina, biologia, ecologia, genética, etc) e a ciência econômica: ambas buscam analisar fenômenos evolutivos, lidam com contingências ambientais, não possuem objetos de estudos estáticos como na química e na física, etc. Todavia, enquanto a biologia tem que lidar com organismos e interações ecológicas que demoram séculos ou milênios para serem alteradas, os economistas lidam com objetos e fenômenos que podem mudar em questão de meses. Por essa razão uma prescrição técnica derivada da ciência econômica, como a política monetária, jamais poderia ser seriamente comparada com uma política de saúde pública.
Quando discutimos a política monetária no Brasil estamos discutindo uma escolha teoricamente baseada em um regime de metas para inflação; isso pelo menos desde a adoção informal do “Tripé Macroeconômico” na gestão de Armínio Fraga. Tal regime de metas por sua vez é uma maneira não-formal de adoção de uma Regra de Taylor para condução da política monetária. Essa regra foi uma criação teórica do economista americano John Taylor em um artigo de 1993 e estipula uma fórmula teórica para determinação de uma taxa de juros nominal neutra para os bancos centrais. A formula de Taylor é bastante simples:
r = p + 0.5(y-yϴ) + 0.5(p – pe) + re
Onde r é a taxa básica de juros da economia (no nosso caso a Selic e no caso americano o Federal Fund Rate), p é a taxa de inflação para o período, (y-yϴ) é o desvio do PIB efetivo em relação ao PIB potencial ou PIB da economia em pleno emprego, (p – pe) é o desvio da inflação em relação à meta, re é a taxa de juros neutra da economia e as constantes 0.5 são elasticidades assumidas como sendo 0.5; indicando respostas de juros positivas tanto a desvios de inflação em relação à meta como a desvios do PIB em relação ao PIB potencial.
Diferentemente de um epidemiologista que teria apenas que analisar as evidências concretas dos estudos sobre Covid-19 e que poderia ter a certeza de que seus resultados não mudariam em um espaço curto de tempo, um economistas teria que lidar com várias variáveis não-observacionais para estimar um nível adequado de juros segundo os modelos baseados na Regra de Taylor.
Diferente das evidências epidemiológicas que podem mais ou menos serem observáveis em campo, as “evidências” que dão suporte à tomada de decisão na política monetária brasileira são construtos teóricos que precisam ser estimados a partir de modelos econométricos; modelos esses que por sua vez também são meramente testes estatísticos construídos com base em uma formalização teórica.
Afinal, o que seria algo como um PIB potencial? Como se estimar isso? A estimação do desvio do PIB potencial envolve uma série de técnicas econométricas especiais que, por sua vez, sequer conseguem chegar a um resultado próximo do conclusivo, pois os modelos são incapazes de diferenciar desvios causados por choques de demanda e desvios causados por choques de oferta. A diferença entre os dois tipos de choque tem implicância para a política monetária, pois em um ela é mais eficaz e no outro ela é menos eficaz ou mesmo pró-cíclica.
A estimação da taxa de juros neutra é um excelente exemplo de como a incerteza ronda os construtos aparentemente sólidos dos economistas. Apesar de existir uma série de profissionais que dizem conseguir estimar a taxa de juros neutra adequada para um modelo de Regra de Taylor, a realidade econométrica não é tão precisa. Em uma revisão da literatura sobre juros neutro, Ferreira e Mori observaram que não existe um único método de estimação, mas sim três: Filtro Hodrick-Prescott, VAR e Modelos de Espaços de Estados. Analisando as estimativas feitas pelos três métodos para um mesmo período da economia brasileira os pesquisadores chegaram à conclusão de que eles geram resultados díspares, com cada método entregando um juro neutro diferente. Se tal fosse o cenário com relação aos dados relacionados com a eficácia de um medicamento, os pesquisadores ficariam simplesmente chocados com a anomalia.
A própria determinação das elasticidades do modelo e qual a meta de inflação deveria ser utilizada é resultado de escolhas muitas vezes aleatórias e nada exatas. Na formulação original de Taylor as elasticidades 0.5 são simplesmente assumidas para o caso da economia americana e a meta de inflação é tacitamente assumida como sendo 2% simplesmente devido os bons resultados que tal meta tem gerado pelo mundo desde a primeira vez que foi adotada na Nova Zelândia em 1990. Não existe uma explicação formal que explique a razão da meta ser 2%, simplesmente assumimos que assim será melhor dado a série histórica.
Devido essa natureza imprecisa da política monetária é que eu não creio que a comparação com uma política epidemiológica de saúde pública seja adequada ou justa. Os economistas enfrentam um desafio bem maior do que os médicos para estarem menos errados com relação aos seus diagnósticos e é natural que o ruído gerado pelas divergências seja maior nesse caso. E é precisamente por isso que as atitudes de embate e a retórica populista do governo federal também são condenáveis a partir desse ponto de vista. A política monetária não é determinada a partir de decisões fáceis de vontade monocrática, mas sim por meio de uma difícil tarefa de análise, ponderação e debate técnico. Jogar o povo contra o presidente do Banco Central e seus técnicos só piora o trabalho.
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